19.9.16

Presos pela lua em Atacama




A dada altura da nossa viagem pelo mundo, e por nós mesmos, ficámos presos. O lugar de onde não conseguíamos sair foi o deserto de Atacama, numa semana de lua cheia que nunca mais acabava - ali para Outubro ou Novembro de 2014. O tempo passa e nunca fui boa a contá-lo. As aproximações sempre fizeram parte de mim. Temos que aceitar isto.
Tínhamos chegado ao deserto depois de uma ida e volta ao inferno e ao paraíso. Palavras aparentemente exageradas. Tentaria evitá-las se não fossem tão necessárias para explicar o que vivi. Uma ateia que se refere ao mundo com palavras bíblicas. Que me sugerem outras para o inferno que vivi na semana da morte da minha avó, comigo longe. Em Sucre. A branca e fúnebre Sucre. Ou outra para descrever melhor a paz a imensidão, a beleza e a todas as lágrímas que deixei entre o salar de Uyuni e a fronteira com o Chile. Se calhar, um dia falarei deste estranho período da nossa viagem e da minha vida. Um dia em que esteja cheia de coragem.
Tão longe que me parece hoje, esse dia.

Ficámos, assim, presos no meio de tanta liberdade.
Tínhamos chegado cheio de pó, com os olhos vermelhos do sol e de tudo o que vimos, movidos por promessas do melhor céu do mundo para se ver estrelas. Uma vontade bonita e aparentemente fácil.
Mas tudo o víamos era uma imensa lua cheia, quando nos passeávamos na vila de San Pedro nesses longos dias de espera. 
As estradas de terra batida, casas brancas ou ocres, cães errantes, areia levantada pelo vento, nós e a promessa. Como num cenário de um western, não fossem os turistas à procura de gorros de alpaca e uma manifestação de professores "trabajar... ¿sin opinar ?" para nos fazer sentir em casa.

Estávamos a 3 ou 4 meses do início do nosso périplo. Não tinhamos parado muito até então, não sou de parar. Faz-me um mal terrível às costas e o Stéphane, o homem mais calmo e sensato que já conheci, estava a desenvolver uma estranha e forte urgência em viver. As crianças, essas, íam andando atrás de nós, ao lado e muitas vezes à frente. Tão maravilhadas como com um jogo de vídeo novo, mas sem comandos. As crianças são fantásticas em movimento. Autênticos bichos de adaptação e resiliência. Maldigo as regras, paredes, salas de aula e outras prisões. Não posso fazer de outra maneira. Aprendi demasiado nesta viagem para ser compreensiva. Vivo desta estranha forma.

Mas a prisão que encontrámos em Atacama era diferente. Queixávamo-nos da má sorte que se tinha abatido sobre nós : a lua cheia mais cheia e mais longa das nossas curtas e medianas existências. Todos os dias, no pico do calor quando estávamos a cozinhar o almoço, discutíamos se devíamos esperar ou abandonar o céu estrelado que teima em esconder-se. Iamos ficando, estava calor lá fora. Amanhã logo se via. Hoje comemos ovos mexidos com tomate.

Estávamos numa espécie de villa de uma senhora, que aceitava roupa para lavar, dos turistas e passantes empoeirados, em troca de pesos chilenos. No deserto, apenas a água para beber é gratuita. Quando temos sorte. Os quartos ocres estavam distribuídos à volta de um pátio. E na sombra desse pátio passávamos os dias à espera da frescura suficiente para sair.

Uma grande parte das perguntas que me fazem é acerca da escolaridade dos miúdos. Não estamos habituados a ensinar aos nossos filhos. Parece-nos estranho. Temos receios. Delegamos, delegamos, delegamos. Tínhamos que dar a primeira classe ao nosso filho e a terceira à nossa filha. Queriamos tanto fazer esta viagem que demos ouvidos apenas às facilidades.
Eles têm personalidades opostas, o nosso filho quer ser o melhor a tudo e a minha filha quer viver melhor, um dia de cada vez, todos os dias. Nada pode ser mais antagónico.
Ainda a viagem não tinha começado e o nosso filho já sabia ler e escrever. A nossa filha, essa, já a viagem tinha acabado e ela ainda não estava convencida que era pela escola que tinha que ir.
Um dia contou-me que nunca mais queria acabar de viajar, que queria andar por ali, a conhecer pessoas e mundos, que ninguém lhe dissesse o que era importante aprender, que fosse ela a decidir e a ir indo. Eu estava com o período nesse dia e chorei. Entrou-me um cisco no olho. No dia a seguir, não me apanhou desprevenida e forcei-a a fazer uma ficha inteira sobre o Passé Composé. Não tenho a certeza de nada, mas acho que ensinei o programa da terceira classe à minha filha por medo e não por convicção. Quero muito ser uma boa mãe. Não faço ideia como é que isso se faz, apenas sei que não vem nos livros.

O melhor amigo do meu filho nessa semana foi um japonês de 50 anos. O meu filho foi obcecado pelo Japão quando estávamos no norte do Chile. Queria ver documentários sobre Kyoto e a fauna japonesa das montanhas, desenhar grous e gruas e aprender a falar japonês. Todos os dias aprendia palavras com esse companheiro inesperado de infortúnio e sonhava poder voltar a casa, para trazer o seu kimono branco do judo, num instante. No fundo, no fundo sempre foi japonês na alma, estava convencido disso. Durante toda a semana.

Por volta das 4 ou 5 da tarde entrávamos no deserto em jipes ou carrinhas com ar condicionado. Percorríamos paisagens lunares. Nadávamos nos grandes e inesperados buracos com água no meio daquela areia toda, flutuávamos nas lagoas salgadas que nunca nos deixariam morrer afogados. E olhávamos a lua a subir, a grande e cheia lua do outro lado das lagoas.

Quando estava no vale de Marte, ou da Morte, segundo os guias mais sensacionalistas, não pude deixar de pensar em como nada daquela paisagem extraterreste me remetia à ideia que faço da morte. Tudo à minha volta me parecia belo e imenso e vivo, as cores da terra e da areia, as formas das dunas que pareciam mudar de feitio todos os dias, as sombras tão diferentes a cada hora do dia, as temperaturas extremas do meio-dia e da meia-noite, as cores do nascer e do pôr do sol. A vida. E divaguei nas paisagens que associo à morte. Os centros comerciais dos anos 90, agora abandonados, os prédios enormes sem varandas com cores deslavadas, as marquises, os estores em PVC branco fechados, os parques de estacionamento, os parques infantis enferrujados,muitas vezes partidos, as garrafas de cerveja estilhaçadas, os bancos partidos, os passeios desnivelados, os tags sem sentido nem talento, as passagens com cheiro a urina. A minha ideia de morte é o mau urbanismo dos subúrbios de Lisboa. Do declínio que respiro nas paisagens dos meus mais belos anos. Regresso a elas quase todos os anos e finjo não sentir um peso maior do que a saciedade da saudade.
Queria ver vida nos lugares onde eu já vivi tanto.

Tinha lido Luis Sepúlveda, em tempos de amor literário adolescente, daqueles amor obsessivos que nos levam a querer ler tudo de um autor, Lembrava-me da capa do livro "Rosas de Atacama", mas aos 39 anos não me lembrava de uma única linha. Pensei nisso enquanto olhava para o dramático Licancabour ao pôr do sol. Perguntei-me sobre se algo nesse livro poder-me-ia ter preparado para tão extraordinário espectáculo.  
Não tenho ideia de quantos anos vão passar até esquecer por completo estes dias de areia e de espera.
Licancabur. Que palavra tão fenomenal e apropriada.

No dia em que a lua cheia desapareceu corremos para um astrónomo francês, que todos diziam ser o melhor da terra, para percebermos o que íamos ver. Todas as estrelas do mundo. Toda a nossa ignorância.
Mas apenas um inexperiente, nesta coisa de se depender da natureza, espera exactidão e agendas. O céu estava coberto de nuvens. Evidentemente. Quando se sai do outlook, das reuniões, dos relógios, das rotinas e dos horários, tudo pode corre mal. Ou diferente. Na verdade, é assim a vida. Mas não podemos saber quando estamos ocupados no dia-a-dia. A vida real nunca acontece como esperado.
E ainda bem.
Ninguém estudou nesse dia de frustação. Um dente de leite caíu. E as nossas certezas e preocupações pareceram-nos ridículas. As nossas expectativas, infantis. As nossas certezas, vergonhosas. Pensávamos que estavamos a viver um sonho, que românticos e inadaptados podemos às vezes ser. A realidade, essa, mesmo quando todos os projectos mais loucos, tem sempre a última palavra.
Na noite a seguir, fomos ver estrelas com um enorme telescópio e um raio laser.
Nada foi tão bom como a espera.
Só alguém que se esqueceu do que leu podia não saber disto.

7 comentários:

  1. Quero muito acreditar que quem não se esqueceu do que leu é porque ainda não leu grande coisa (a alternativa é aceitar que caminho para a velhice).
    E agora uma coisa inesperada: ler-te e isso ser um conforto tão grande, um retorno à estabilidade. Aposto que nunca te acusaram disso antes ;) Continua a passar por cá, sim?

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  2. Uau, que bom, que bom que voltaste para contar mais! Eu também estou a aprender que esperar pode ser bom.

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  3. Agora fizeram-me ficar nostálgica de 2010, coisa que nunca me passaria pela cabeça.
    (E claro que estamos a ficar velhas).

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  4. Encontrei este blog, Carla, não sei bem como durante o dia de hoje e no meio de umas mil coisas no trabalho. Posso ter achado uma das melhores coisas deste ano. Porque não há muita gente que descreva tão bem A vida como tu.

    Sou uma desconhecida, mas vim para ficar.
    Obrigada e até já,

    Patrícia

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  5. que saudades de ler os teus relatos. também foi uma espera lenta...
    :)

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